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(Contos) O diário do Ser Humano

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O sol estava a pino naquele dia, mas a cidade estava vazia. A poeira cobrira tudo nos últimos anos, e agora a tudo era um grande deserto. Exceto pelas aves, ratos, e outros animais que ainda conseguiam sobreviver naquele lugar.
Na cobertura do prédio mais alto, do ponto mais alto da cidade, estava ele. O velho. O último. O homem. Era um senhor magro, negro, com cabelos grandes e brancos, iguais aos de um cientista louco, relógio quebrado no pulso e pijamas. Todas as rugas do mundo haviam migrado para seu corpo. Apesar de bastante velho, não usava bengalas. A solidão fortalecia seus músculos toda vez que precisava se virar para conseguir alguma coisa. Tinha os dentes sempre bem escovados também.
Diria-se que estava preparado para uma guerra, se não fosse a desolação completa em que se encontrava. Ele havia ajuntado comida, utensílios, armas, bombas, granadas, e tudo o que pudesse ser útil em caso de uma invasão. Só não sabia direito quem ou o que poderia invadí-lo. Na verdade, nem pensava nisso. Apenas estava preparado.
Um dos utensílios era uma luneta. Uma ótima luneta. Com ela, era capaz identificar um gato na linha do horizonte. Todos os dias, passava horas monitorando tudo. Como não conseguia se concentrar em apenas uma coisa, ao mesmo tempo em que observava sua luneta, também comia, falava sozinho e ouvia música em um aparelho a pilha. E mesmo assim, a cada 5 minutos tinha um ataque de hiperatividade e precisava pegar alguma coisa para deixar perto dele: uma granada, um brinquedo, um livro.
Em um dos cantos da cobertura, havia um conjunto de revistas de vários estilos: estéticas, viagens, eróticas, fitness, dentre outras. As indústrias do bem estar, da beleza e do sexo haviam explodido nos últimos anos. A iminência do fim da raça humana foi o início do reinado do “Carpe Diem”. O velho não tocava em nenhuma das revistas. Não tinha coragem de lê-las, nem de abrí-las. Porque isso o faria se lembrar de coisas… Da sua vida antes dos problemas no mundo… Não queria se lembrar de nada. Só queria estar protegido e monitorar os acontecimentos. Mas deixava as revistas ali.
Escrevia tudo o que se passava em um diário, chamado “O Diário do Ser Humano”. Começou a escrevê-lo no dia em que o penúltimo homem morreu. No diário estavam descritos os eclipses, fenômenos naturais, as brigas entre animais na cidade por comida, quedas de construções, tudo que ele conseguia enxergar, e as coisas de sua vida, como qual livro estava lendo, como encontrava comida, etc. Torcia para que um dia alguém lesse o que ele escreveu, e soubesse que houve vida inteligente nesse lugar. E que no final, essa vida inteligente ficou muito burra e acabou consigo mesma. Talvez uma outra raça, terráquea ou espacial, descobrisse o livro. Talvez os macacos ficassem espertos, como naquele filme que já não lembrava o nome.
No dia 2745 do seu diário (que já era uma pilha de cadernos), o velho avistou uma sombra no horizonte sentido norte. Procurou-a pela luneta. Era um ponto escuro que se mexia irregularmente. Poderia ser um animal. Aos poucos viu que era bípede, e andava ereto. o velho tomou um susto, e teve calafrios. Não era possível que mais pessoas tivessem sobrevivido. Ele mesmo fora responsável por montar o último abrigo humano. Logo ficou excitadíssimo, mais hiperativo que o normal. Andava de um lado para o outro. Botava as mãos na cabeça, gritava, pulava, olhava na luneta novamente para se certificar que não era um sonho. E cada vez que olhava, a forma se parecia mais com a de um ser humano.
Correu para uma caixa cheia de fogos de artifício, e atirou vários deles, criando um espetáculo digno de uma festa de ano novo. Olhou pela luneta novamente, e agora viu duas formas humanas. Não. Duas formas e meia! Parecia ser um casal com um filho! Ao ver a forma pequenina, lágrimas surgiram de seus olhos ressecados. Não via uma criança viva há muito tempo… Pegou o diário e começou a anotar o que estava vendo… e enquanto anotava, a emoção aumentou de tal forma que o velho perdeu o equilíbrio e caiu no chão.
Estava tendo um ataque cardíaco. Seu coração estava anormalmente acelerado. Mas se fosse o fim, então ele precisava ver novamente. Fez um último e enorme esforço, como nunca havia feito, e olhou novamente pela luneta. E o ataque cardíaco perdeu a importância. O velho viu amor, esperança, viu sua família viva correndo em sua direção, viu balões coloridos, felicidade, parques, casais, restaurantes… vida. Viu tudo quanto ainda seria feito.
E eis que era muito bom.

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